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Daqui A Alguns Anos

Acordou em uma cama, que não era a sua. Olhou pra um teto, que não era o seu. Passou a mão pelas cobertas quentes, que não eram as suas. Olhou pra o marido, de olhos fechados e barriga pra cima, que não era o seu. Tentou se situar numa vida que não parecia sua. Levantou e colocou os pés no chão gelado. Aquele chão gelado não era do seu Brasil. Pela janela, uma paisagem gélida de inverno. Reparou que estava com frio, em meio a confusão. Buscou um casaco no closet daquela casa. Pegou botas de neve, calças de frio, meias, casacos, luvas e um gorro. Vestiu-se, e com o homem dormindo na cama, saiu. Sentou-se em um banco lotado de neve, depois de espaná-la pra longe. Parou pra pensar. Aquela era a vida que ela tinha vivido nos últimos seis anos. Daqui meia hora, Jackie, sua filha, teria acordado, e estaria faminta por algo além de ficar dentro de casa. E Matthew, seu filho, estaria sendo provocado por Jackie. Quando foi que as coisas mudaram tanto? Lembrava dos namoros da adolescência, das bebedeiras, das novas experiências, das notas baixas, dos bares, dos shows. E isso ficou pra trás? Quando? Quando é que tudo ficou sério? Quando ela saiu da faculdade com noivado engatado? Ou quando nasceu seu primeiro filho? Quando ela saiu do Brasil já casada? Ou quando se viu na cozinha, revezando as tarefas diárias, desejando uma taça de vinho, e conversando com o marido? Foi quando ela deixou a boneca de lado? Quando acabou o ensino fundamental? Ou o médio? Foi quando arrumou um emprego meia boca em um jornal que demorou a lhe reconhecer como talento? Não sabia. Que manhã normal, pra acabar cheia de perguntas. Isso era o que ela queria? Não tinha mais tempo pra pensar no que ela queria. Daqui a pouco, estaria em uma casa em plena atividade matinal, cheia dos berros das crianças e da correria do marido. Os amava, e não os trocaria por nada. Mas tanta coisa que não havia feito... Pular de bungee jump, saltar de asa delta, escalar o Everest, ménage a trois, relacionamento aberto, experimentar LSD, correr o país inteiro, cozinhar jantar pra três, repintar a sala sozinha, dormir sozinha só consigo mesma, cantar sozinha sem medo de ouvirem-na. Tanto que não tinha feito. Casou-se com um inteligente, teve filhos comportados, comprou uma casa bonita. Seguiu vivendo a sua vida que não parecia sua, ouvindo as músicas que pareciam ter perdido o sentido. Não havia do que reclamar, em teoria. Pra quê crescer? Não sabia. Mas seguia. Sempre em frente. Um vulto empacotado em roupas invernais saiu de casa, acompanhado de outro vulto consideravelmente menor. Jackie e seu marido.
- Mamãaaaaaaaaaaaaae - Seus olhinhos brilharam ao escalar os joelhos da mãe.
- Olá, querida. - Abraçou-a. Dylan, seu esposo, sorriu. E juntou-se ao abraço. Não sabia se estava onde deveria estar, mas sabia que estava onde queria estar. Mesmo com o tempo ruim, com a neve, e com a adolescência distante.

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