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Acha Que A Sua Indiferença Vai Acabar Comigo?

Eu sobrevivo, eu sobrevivo!

Polônia. Tempos difíceis, todas as pessoas consideradas indesejadas estavam indo embora para terras quentes, infestadas com o odor da novidade, do fervor da fuga. A saída sorrateira do país desencontrava amores, despistava amantes. Numa casa, não muito longe do centro de Varsóvia, uma mulher suspirava. Lia e relia a única carta do amado, com o perfume quase se esvaindo do papel, letras borradas das lágrimas que ambos derramaram naquele frágil pedaço de papel, cheio de promessas e saudades.

Rosa, tão bela Rosa. Tive que partir, e você sabe minhas motivações. Deixo-lhe com um aperto no peito, beijos em tuas mãos e com dissabores na vida. Prometo-lhe notícias, em breve, da carta que precisas para deixar o país, e vir, finalmente, me encontrar. Ansiosamente, aguardo-te e sonho contigo todas as noites. Porém, a vida nos trópicos está me fazendo bem. Quase não se vê sinal das minhas tosses. Estou empregado, trabalhando na fábrica de alumínio. Moro com mais dois homens e um apartamento na periferia do Rio de Janeiro. Não é lugar para moças como você, e, francamente, para nenhum ser humano. Espero que quando estiver tudo certo para sua vinda, eu possa nos dar mais conforto em uma casa própria.
Cheio de amor e saudades,
Sempre seu
S.


Quase seis meses fazia que tinha recebido essa carta. Depois disso, não mais teve sinal da existência dele. Durante a noite, imaginava torturas terríveis, prisão perpétua, morte. Temia tanto por ele que seu coração doía vinte e quatro horas por dia. Há tempos havia resolvido resolver os seus problemas de imigração sozinha, e estava decidida: mês que vem, partiria para o Brasil. Conseguiu a carta, os documentos, tudo. E, apesar de não ter nenhuma certeza a esperando no Brasil, iria. Se jogaria no mundo. A cada dia, estava mais difícil ficar naquele país gélido e problemático. Ansiava, apesar de não admitir, encontrar-se com Sulick. Por mais que ele não mandasse nem sinal da sua existência, seu âmago tinha necessidade de vê-lo, tocá-lo, amá-lo.
O dia chegou. Agarrou seus parcos pertences, jogados em uma mala média, juntou os documentos e embarcou no barco pesqueiro (o que tinha dinheiro para pagar), rumo ao Brasil. Após mais algumas semanas de viagem, pisou em solo brasileiro. Sozinha, quase sem dinheiro, e com o suposto endereço de Sulick nas mãos, se jogou nas ruas do Rio. Caminhou por horas quase sem rumo, tentou trocar seus trocados por dinheiro brasileiro sem sucesso, e conseguiu carona para o distrito periférico industrial. Apesar dos pesares, seu coração batia freneticamente, empanturrado com a perspectiva de encontrar o cheiro conhecido do colo de seu amor. Ao chegar, só o que invadiu suas narinas foi o odor de esgoto e fumaça, que a deixou tonta. Perguntou por Sulick para várias pessoas, até, finalmente, encontrar alguém que o conhecia.
- Ele costumava morar ali, com mais dois rapazes. Se mudou faz um mês, pra uma casa mais perto da cidade. Diz-se que casou com moça rica. -
Casou? Como assim, casou? Com alguém que não fosse ela? Seu coração, antes abarrotado de esperança, quebrou e espremeu de si todo e qualquer sentimento bom. O moço que deu essa informação, deu também o tal endereço e ofereceu para levá-la. Ela aceitou, e foram. Várias imagens mentais perpassaram a cabeça dela. Uma moça de véu e grinalda, um moço de terno e gravata, casando. O moço era ele, mas a moça não era ela. Sem que percebesse, chegaram a uma casa modesta, não tão longe dali.
- É aqui. Pode descer. -
- Obrigada! -
Assim que desceu do carro, portando sua mala semi vazia e um semblante desconsolado, o veículo se distanciou e se viu parada na soleira da porta de um antes conhecido. Passou meia hora encarando a maçaneta, a porta, os degraus... E bateu. Poucos segundos depois, uma mulher sorridente abriu a porta e a encarou, levemente confusa. Óbvio que estava confusa. Estava olhando para uma moça quase cadavérica, com o cabelo escondido por um lenço, uma mala nas mãos, roupas maiores que seu tamanho e quentes demais para o clima da cidade que estavam, e com ar de tristeza.
- Pois não? -
- O Sulick se encontra? -
- Se encontra sim, quem deseja? -
- Rosa. -
- Gostaria de entrar? -
- Não, obrigada. Gostaria que ele viesse até aqui, se não for incomodar demais. Eu aguardo em pé. -
A moça desapareceu corredor adentro, visivelmente perturbada. Rosa não se via no espelho há muito, mas tentou ajeitar os cabelos, mesmo que cobertos pelo pano, e passaria um batom, se fosse possuidora de um. Tentou sorrir, mas sua boca só projetou um esgar cínico e cansado. Nos poucos instantes que passou plantada ali, pensou que, apesar de tudo, ainda queria sentir o corpo dele roçando no dela. Sentir a graça que era quando ele a abraçava. Ao aparecer na porta, ela não viu seu namorado. Viu um homem completamente mudado. Deixou a barba crescer, usava bermuda e parecia mais gordinho. Parecia feliz.
- Pois não? -
- Sulick? Sou eu! -
- Rosa?! -
- Sim. -
Os dois permaneceram em silêncios sepulcral, se encarando. Ambos mudaram muito. E se estranhavam.
- O que você está fazendo aqui? Como conseguiu sair da Polônia? -
- Vim procurar você. Senti tua falta -
- Bem, também senti a tua falta. Mas há de convir que é quase impossível se relacionar a distância. Foi aí que conheci Ana. O pai dela era meu vizinho, e nos demos muito bem. Aluguei essa casa com o dinheiro que juntei do trabalho da fábrica, e agora somos casados, como pode ver. -
Seus olhos se encheram de lágrimas. Tentou controlar a cólera e a dor que sentia emergindo da sua alma, mas foi inútil.
- Era isso que você estava fazendo quando eu estava juntando dinheiro pra conseguir vir pra cá? ERA ISSO, SEU ESCROTO? -
Não costumava falar palavrões, muito menos gritar. Ele se espantou.
- É dinheiro que você quer? -
- EU QUERO É QUE VOCÊ VOLTE PRA O QUINTO DOS INFERNOS, SEU FILHO DA PUTA! -
- Não sou obrigado a te escutar balbuciar impropérios na frente da minha casa. -
E bateu a porta na cara dela, que continuou gritando por alguns minutos. Desconsolada, sentou na soleira daquela porta. Não fazia a menor ideia de para onde ia, onde ia trabalhar, o que ia comer. Perto dali tinha uma pensão de moças, acabou descobrindo ao vagar pela região. Prometeu pagar assim que tivesse dinheiro, apesar de não saber onde obter algum. Deixou seu dinheiro não trocado como garantia. Algumas semanas depois, fatigada de uma rotina enfadonha e metódica, conseguiu pagar o quarto que estava dividindo com uma moça da vida. Sentia-se fraca, exaurida e quebrada. Trabalhava todos os dias por mais tempo do que gostaria, e depois se limitava a ler os mesmos livros que trouxera consigo da Polônia e a aprender a balbuciar português. Aos poucos, foi aprendendo. Não só a falar e escrever em um idioma completamente diferente, mas a viver a vida de um modo que não exigisse que ela se sentisse uma merda.
Indiferença nenhuma iria acabar com ela. Sobrevivente, era essa a palavra. As vezes, chegavam notícias da Polônia. Assim, descobriu que sua decisão de se mudar para longe fora acertada. Não estava nada boa a situação da sua terra pátria. Fazia um ano desde que havia se mudado, tinha sido promovida no trabalho, apesar de ainda ganhar muito mal. Ao menos, tinha um quarto privativo na pensão, e um colega a havia chamado pra sair. Era uma nova mulher. Ganhou alguns quilos, estava mais corada.
Mais dois anos se passaram, e estava casada com o dito cujo do encontro, a espera de um filho. Se mudara para a casa dele, e não podia estar mais feliz. Pensava, ainda, em Sulick. Seu marido também era polonês. Viviam bem, ele dirigia uma fábrica e tinha dinheiro de família. Quase não mais se lembrava das condições que chegou ao país, só de Sulick.
Criança nasceu. Uma linda menina. Joana.
Joana crescia a olhos vistos, e, aos 15 anos, veio com seu primeiro namorado para casa. Samuel, era seu nome. Também vinha da casa de uma boa família de judeus poloneses, e era colega de escola. Rosa o achava encantador, e tratou de convidar os pais do menino para um almoço em família. Marcou para dali uma semana, e Joana era só felicidade. Rosa, porém, guardava um segredo em seu coração: Sulick. Passou a semana se distraindo com os preparativos do almoço, que deixariam a filha feliz. Domingo chegou, e com ele, os pais de Samuel. Campainha toca.
- Eu abro! -
Joana grita, da sala. Sai correndo, cumprimenta os sogros, o namorado. A mãe sai da cozinha, com um sorriso no rosto, prestes a cumprimentar todos também. Engole em seco. Eis, que no corredor de sua casa, se encontrava seu maior terror.
- Olá, Rosa -
- Olá, Sulick. -
Se encararam longamente, e se afastaram. Cumprimentou Ana friamente, e teve o almoço mais insosso e horroroso da sua vida. Foi silencioso, rápido e traumatizante. Passou o almoço com uma cara amuada, e quando o marido perguntava se havia algo de errado, se limitava a murmurar que não. Quando foram embora, depois de uma sobremesa sublime (que para Rosa, não teve gosto de nada), ela se recolheu no quarto para confrontar suas emoções. Sua filha. Namorando. O filho. Da pessoa mais deplorável. Não estava conseguindo processar. Só esperava que fosse passageiro, por que não iria proibir nada, não ia negar amor para o único amor que ela tinha na vida, sua querida filha.
Não foi passageiro. Joana e Samuel se casaram. Rosa vive, até hoje, com um buraco no peito em todos os almoços de domingo. Tem netos, vários netos. Seu marido não suspeita, e ela se tornou profissional em fingir.

- Entendeu, minha filha? Essa é a história da minha vida. -
- Entendi, vó. -

Neta e vó guardaram o segredo dentro delas. Uma, com curiosidade, outra, com pesar.

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