“Don’t let me go, don’t let me go, don’t let me go, don’t let me go, don’t let me go, don’t let me go.”
Precisava de um cigarro. Desesperadamente. Talvez não fosse de um cigarro que precisava, mas foda-se, era isso que ela ia fazer. Fumar um cigarro. Pegou um isqueiro preto no bolso e abriu a bolsa a procura de um maço de uma marca qualquer de cigarros. Pegou um deles, e colocou na boca. Acendeu, e ficou lá, sentada no banco, aproveitando seu último cigarro, por que o maço acabara e ela estava sem dinheiro pra outro. Ficou observando as pessoas que passavam, absortas em seus próprios problemas, em suas próprias angústias. Privadas de algo, felizes por um reencontro, chateadas por um bolo, tristes por um fora. Olhou também pra aquelas grandes caixas de metal. Onde cada um também vivia a sua vida. Onde várias famílias respiravam e aspiravam ares diferentes dos outros que estavam no carro com eles. Ela costumava viver a própria vida também. Um tempo atrás, ela costumava viver a própria vida também. Levantou-se meio tonta do banco. Apagou o cigarro no primeiro lugar que achou conveniente e jogou-o no lixo. Saiu andando a esmo pela cidade, aquela brilhante cidade, que brilhava mais ainda sob as luzes laranjas do pôr-do-sol. Fazia dois dias que tinha ido embora, que tinha jogado seu celular fora, e simplesmente esquecido propositalmente de mandar lembranças ou votos de que tudo ia ficar melhor. Não achava conveniente dar satisfações, já que resolveu que ia viver a própria vida, só pra variar. O tempo passava rápido, sem que ela mesma se desse conta, ele voava diante de seus olhos. Prendeu o cabelo em um coque apertado, ajeitou as saias, desceu as meias do tênis surrado, abotoou todos os botões da blusa, suavizou a maquiagem com a ajuda de um espelho, colocou seu melhor sorriso falso, e adentrou em uma loja que ostentava um enorme aviso de “estamos contratando”. “Olá, em que posso ajudá-la?” outra vendedora com um sorriso tão plastificado quanto o dela mesma veio em seu socorro. “Obrigada. Eu vi o aviso lá fora, e estava me perguntando se ainda estão contratando.” Apesar do sorriso, seus olhos diziam muito. “Oh, claro, venha por aqui.” E a levou pra uma sala pintada em tons de verde, com uma mulher vestida em tons de amarelo sentada em uma escrivaninha cinza claro. Quinze minutos depois, conseguira o emprego, o que era realmente bom, já que só tinha mais uns duzentos reais, e não tinha certeza nem se isso ia dar pra pagar as contas. Era um emprego banal de vendedora, mas dava pra pagar as contas, então não se importava realmente se ia ter que manter esse sorriso estúpido e esse ar de interessada na vida alheia todo dia, pelo resto da sua vida. Começaria na segunda. Era uma terça. Ainda ia ter uma maldita semana controlando totalmente todo seu dinheiro pra poder sobreviver. Saiu andando de lá, a esmo de novo. Nunca tinha realmente um rumo certo. Nem pra ela, nem pra sua vida, nem pra nada. Só ia sair andando até encontrar algo satisfatório pra fazer. E se nunca encontrasse, nunca ia parar de andar. Era essa lógica que ela sempre seguiu. Andou até que seus pés começaram a doer e seu estômago começou a revirar. Precisou sentar. Não, cólicas não. Remédio pra isso era caro. E estava a umas duas horas de casa, longe de um ponto de ônibus e longe de tudo que conhecia. Sentiu uma súbita tontura e um desejo incontrolável de vomitar. Ao invés disso, perdeu os sentidos. Quando acordou, tinha tanta certeza de onde estava quanto antes. Ou seja, nenhuma. Estava em uma cama. Ligada a uns aparelhos. Graças aos céus, ninguém estava no quarto. Ela estava sozinha, como sempre esteve. Mais tarde, uma enfermeira disse-lhe que podia ir embora, e que não sabia quem a tinha deixado lá. Foi-se. Continuou a andar com uma vaga impressão de que alguma coisa estava completamente errada, ou completamente torta. Os dias passaram quentes, e as noites passaram frias. Segunda chegou. Ela trabalhou um mês, dois meses, três meses, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, um ano, dois anos, três anos, quatro anos. Tinha feito exatamente vinte anos faziam dois dias. Tinha o suficiente pra ir embora pra onde ela quisesse ir, seu maior sonho. E foi pra o Rio de Janeiro. Do Rio de Janeiro, foi pra outro país. Inglaterra. Tinha as mesmas perspectivas de vida, só que vivendo uma vida mais feliz, menos atribulada de sentimentos, mais vazia, de certa forma. Começou a trabalhar em um jornalzinho de quinta, que ficava em um beco escuro de uma rua meio suspeita de Londres. Comprou um celular, mas mudou seu número. Alugou um apartamento de três cômodos. Cozinha, banheiro, e quarto. Pequeno, mas o que dava pra pagar com o salário que ela ganhava. Mas estava relativamente feliz. Deixou tudo que ela conhecia pra trás. Ia ao mercado todo dia, comprava o essencial, e as vezes o supérfluo, por que era uma pessoa supérflua. Pra o mundo ela era ninguém e pra alguém ela era exatamente o mesmo que ela era pra o mundo. Em um dia chuvoso, ela saiu pra fazer compras com seu guarda chuva amarelo. Estava com pressa. Tropeçou em uma pedra estúpida regida pela maldita lei de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço. E caiu no chão, ralando o joelho, e ensangüentando seu vestido branco. Uma pessoa aleatória a ajudou a levantar e a levou pra um lugar onde havia uma pia. Nesse tempo todo, não fez nenhuma questão de olhar pra tal pessoa, nem de falar nada, estava muito ocupada praguejando o vestido novo da Gucci arruinado que nem se importou de verdade com aquela pessoa que a estava ajudando. Sim, um vestido da Gucci. Estava trabalhando pra o maior jornal da Inglaterra como editora sênior, agora. Já faziam quase dez anos que ela estava em Londres. Quase quinze anos que tinha ido embora da sua própria casa e deixado de viver a vida dos outros. De outro. Depois de alguns infindáveis minutos molhando o vestido e tentando incansavelmente tirar a mancha, virou para a pessoa que a tinha ajudado a levantar. Era um rapaz alto e magro, de cabelos compridos. Parecia ter mais ou menos a mesma idade que ela. Estava usando uma calça jeans, uma blusa branca, e um tênis realmente muito surrado. Mais surrados que os tênis que ela tinha no dia que fugiu de si e dos outros pela primeira vez. Eram inconfundíveis. “Mark?” ela chamou, e sabia que não em vão. “Você nunca me mandou nenhuma carta, nunca atendeu meus telefonemas, nunca respondeu meus emails, mensagens, nunca me deixou nenhum sinal de nada, de que talvez você ainda quisesse me encontrar pra tomar a droga de um café.” Ele parecia chateado, com a mesma voz que sempre fazia quando estava chateado. Ela sabia que era ele. “Eu não queria tomar um café com você.” Ela respondeu, categórica, e ainda tentando limpar o sangue do vestido. “Onde você esteve, afinal?” Ele perguntou, firme. “Por aí.” Ela respondeu, com a mesma firmeza proposta por ele. “Por aí onde?” Ele estava com raiva. “Por aí. Por que isso te interessa afinal? Por que qualquer uma dessas coisas te interessa? Foda-se. Está muito tarde, certo? Muito tarde. Quase quinze anos tarde demais.” Ela também estava com raiva. “QUAL O SEU PROBLEMA?” Ele estava gritando, em português. “VOCÊ É A PORRA DO MEU PROBLEMA, CARALHO. Sempre foi.” Ela estava com medo de desabar em lágrimas. Se segurou e largou a barra do vestido, ainda levemente avermelhada. “EU SOU O SEU PROBLEMA?” ele ainda estava gritando. “Sempre foi, cacete. Foi por quinze anos, e ainda é. Eu viajo pra muitos quilômetros de você, e você vem atrás de mim? Qual é o SEU problema, afinal? Você preferiu assim, se lembra? É SUA CULPA, CACETE, LEVE UM POUCO DA MERDA DA RESPONSABILIDADE QUE EU CARREGUEI POR MUITO TEMPO.” Ela também sabia gritar. “Eu tentei te achar. Eu juro. Eu tentei de todas as formas possíveis. E aqui, em um dia no mercado, na minha segunda semana em Londres, eu achei você.” Ele não estava mais gritando. “Parabéns. Você me achou. Tarde demais.” Ele estava meio aflito. “Por quê?” Ela virou-se, e cruelmente disse-lhe. “Onde você estava quando tudo que eu precisava era de uma ligação? Onde você estava quando eu precisava de um abraço? Onde você estava quando eu fugi? Onde você estava quando eu realmente quis a sua presença? Onde você estava quando eu queria você? ONDE? Agora eu não quero mais. Só um pouco tarde demais. Está cedo, eu tenho que trabalhar, tenho que trocar a minha roupa, tomar outro banho e esquecer de novo que você existe. Meus sentimentos são mais importantes que os seus, certo? E sempre vão ser. Agora eu não estou mais perdida, e você não precisa me achar. Tarde demais. Talvez uma semana atrás não fosse tarde demais. Mas agora é. Por que você precisava esperar pra me encontrar? Eu vou esquecer de novo que você existe, ter todo esse trabalho pra esquecer do seu cheiro, da sua presença, do seu cabelo, da sua voz. Eu já tinha até esquecido como soava, como era estar perto de você. Eu vou ter todo o trabalho de novo. E se seus planos forem ser de ficar aqui, eu simplesmente vou mudar de país. Se você passar a vir nesse mercado, eu vou mudar de mercado. Se isso lhe deixa contente consigo mesmo, ficou uma marca, que nunca vai sumir. Duas semanas por uma vida. Então, tudo que eu tenho a lhe pedir é que facilite nossa vida, e vá embora, por que é isso que EU vou fazer. Antes, eu ficaria acordada a noite inteira. Acho que agora também. Mas, como eu lhe disse, é tarde demais. Adeus.” Saiu, batendo os sapatos fortemente contra rua, na mesma direção de que veio, e foi a vez dele ficar assistindo ela sumir na multidão enquanto se perguntava qual era o seu problema. Foi e vez dele de morrer um pouco por dentro, a vez dele de criar uma cicatriz. Por que no final, todo mundo acaba sozinho, sendo quem você é, quem você não é, ou quem você quer ser, todo mundo acaba sozinho. Ele e ela eram só mais um e uma. Ela, afinal, não foi trabalhar. Deitou na cama, e não se atreveu a levantar. Ligou o som, e ouviu You Found Me do The Fray incansavelmente. Ele voltou pra o apartamento que dividia com um cara qualquer, e dormiu. Dormir. A cura, e o problema.
Confesso, que fui ficando curiosa do começo ao fim. Gostei!
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