Eu ainda me lembro da segunda vez que a vi. Estava com um vestido rodado e bastante pregueado, em um baile, nos anos onde tínhamos a sensação de que tudo era possível. Os anos dourados. Os anos dos Beatles. Os anos de revolução. Os anos do amor. Os anos da guerra. Os anos do Woodstock. Os anos sessenta. Os anos que eu andava com meus jeans rasgados e tênis. Os anos que eu não ligava pra nada, até conhecer você. Num protesto contra a ditadura, lá estava você, linda e revoltada, gritando que queria falar o que pensa. Achei você particularmente encantadora com toda aquela raiva impregnando sua voz, e toda a repulsa expressa em seu olhar. E de repente, me embebi em um sentimento completamente novo. Em algo completamente inusitado pra anos de censura. Passei a me rebelar contra as autoridades, e a viver com medo de ser pego e torturado. Passei a compor sobre você, a ansear por te ver e te ter. No suposto baile, encontrei você tão lindamente ornamentada, e encantadoramente desleixada ao mesmo tempo. Meu coração disparou, mas não tive coragem pra falar contigo. Observei você dançar com suas amigas a noite toda, refutando convites de outros jovens pra dançar. Não dedicou mais de alguns segundos a mim, o que com certeza não foi verdadeiro quanto a mim. Olhei-a por toda a noite , de longe, com medo de ser refutado também. Quando voltei pra casa, voltei renovado. Resolvi que iria a todos os protestos. Que faria acontecer, que tiraria o Brasil da ditadura. Você estava sempre lá, e sem saber, me motivou a continuar. Invarialmente deixava o amor inundar-me aos poucos, e bradava com mais veemência ainda. Vivia com medo. De ser apanhado, torturado, deportado, morto, e o medo de nunca mais te ver. Um dia, esse medo se concretizou. Eles apanharam você. E meus dias após isso foram alagados pela incerteza e frustração, com uma pitada de revolta, e distanciamento cada vez maior do mundo. Queria saber de você, queria saber eles não iam te matar. Na semana que você foi pega, não consegui parar de me culpar. E o álcool e as drogas me faziam deixar isso de lado. Mas não por muito tempo. Um marasmo de solidão me envolvia com tal força, que eu me surpreenderia se sobrevivesse depois disso. Minhas noites eram infestadas de pesadelos, e eu mal respirava. Estava vivendo uma sobre vida. Não me importava mais. Soube pelos seus amigos que você tinha falecido. Eles tinham torturado você até que seu corpo não agüentasse mais. Acho que foi nesse dia que meu coração parou de bater e congelou. Meu dia consistia em protestar drogado. Sempre querendo você de volta pra protestar ao meu lado. Sempre perdendo a razão. Um dia, eu resolvi parar. Estava com exatos recém completados vinte anos. Fazia três anos que eles tinham matado você. Estávamos em sessenta e sete. E eu sempre tinha sido aquele jovem distante, mais ainda quando te conheci. Deixei a escola de lado, deixei minha vida de lado. Dediquei meus melhores anos à você, Angie. Agora já se foram quarenta e dois anos desde que eu tinha vinte anos e resolvi te superar. Resolvi me formar. Virei jornalista. Declarei minha juventude pro Brasil inteiro. Casei-me. Tive filhos. Pedro, André, e Nina. Separei-me. Ganhei a guarda dos meus filhos. Comprei uma casa de praia. Comprei um apartamento maior pra morar com eles. Pedro se formou em direito. André se formou em zoologia. Nina se formou em artes plásticas. Nina fez pós-graduação em música. Pedro largou o direito e montou uma banda, ainda recém formado. Nina passou a idolatrar Sex Pistols e começou a tocar bateria. André se entregou à banda do irmão e juntou-se pra tocar baixo. Nina escreve uma música sobre a mãe que nunca existiu. Nina se entrega ao movimento anarquista, e se muda de casa. André pinta o cabelo de azul. Pedro raspa o cabelo. Nina Se revolta com o holocausto e resolve idolatrar os judeus. André muda de casa. Pedro vai morar com irmão pra facilitar a turnê. Nina namora. Nina acaba o namora por que acha o namorado conformista de mais. Nina se envolve em protestos contra a guerra do Iraque. Eu tive que ir soltar Nina da cadeia por perturbar a ordem pública. Nina arranja outro namorado. Nina para de se envolver com drogas. Pedro também. André descobre as drogas. André se vicia nelas. André larga as drogas. Pedro e André fazem sua primeira turnê mundial com a banda deles, I Don’t Mind. Nina fica noiva. Nina larga o anarquismo. Nina casa. Pedro arranja namorada na turnê. André casa em Vegas. André se apaixona pela esposa. Pedro se casa. André se casa de novo. Nina tem uma filha, Angie. André tem uma filha, chamada Chris. Pedro tem gêmeos, Paul e Sarah. Nina tem um filho, chamado John, em homenagem ao John Lennon. André tem um filho, chamado George. Nina tem mais um filho, e esse se chama Ringo. Temos os Beatles em casa. Sinto-me alegre. Agora eu sou avô de sete crianças, sedentas de saber. Conto-lhes sobre a quase avó Angie, e a pequena Angie se refestela de prazer. Sou agora um velho de oitenta e dois anos, que cresceu nos anos de anarquismo brasileiro. Vivi nos anos de guerra, nos anos de ditadura. Agora vivo sereno, cheio de netos. Meu sonho é que esses netos fossem seus também, Angie. Queria que você simplesmente estivesse aqui comigo. Foi-se cedo demais. Agora fazem exatos quarenta e cinco anos que você se foi. E eu ainda não consigo deixar de pensar no jeito como você sorria. Ah, volta pra mim, Angie. Pareço um velho bobo, escrevendo pra alguém que morreu há tanto. Não foi só alguém que morreu naquela noite, não. Foi meu verdadeiro amor que morreu ali. Angeline, meu verdadeiro amor. Nunca mais me senti daquele jeito de novo, amor. Nunca esqueci de você. E nem pretendo. Amar não é para os tolos, amar é pra quem deixa alguém penetrar nos segredos incompreensíveis da alma, fazendo cada pedacinho de si parecer especial. Afinal amar é uma forma de narcisismo. Angeline, feliz aniversário.
Eu sobrevivo, eu sobrevivo! Polônia. Tempos difíceis, todas as pessoas consideradas indesejadas estavam indo embora para terras quentes, infestadas com o odor da novidade, do fervor da fuga. A saída sorrateira do país desencontrava amores, despistava amantes. Numa casa, não muito longe do centro de Varsóvia, uma mulher suspirava. Lia e relia a única carta do amado, com o perfume quase se esvaindo do papel, letras borradas das lágrimas que ambos derramaram naquele frágil pedaço de papel, cheio de promessas e saudades. Rosa, tão bela Rosa. Tive que partir, e você sabe minhas motivações. Deixo-lhe com um aperto no peito, beijos em tuas mãos e com dissabores na vida. Prometo-lhe notícias, em breve, da carta que precisas para deixar o país, e vir, finalmente, me encontrar. Ansiosamente, aguardo-te e sonho contigo todas as noites. Porém, a vida nos trópicos está me fazendo bem. Quase não se vê sinal das minhas tosses. Estou empregado, trabalhando na fábrica de alumínio. Moro com mais doi
Espero que você tenha noção do seu talento. Eu tenho. Talvez um dia você enxergue. Se você não divulgar a sia própria, eu vou. Já cansei de ver o seu talento ser banido do mundo assim Bianninha. Pare de ser egoísta, e divida o seu talento com os que podem ama-lo. Você já tem um fã. Eu. Amo você Bi.
ResponderExcluirAh, brigada, "Happy". Mas como você sugere que eu divulgue esse suposto talento?
ResponderExcluirSério, obrigada, eu adoro reconhecimento. Depois eu mostro meu projeto de livro :*
Continuem lendo, galere.
Bianca adorei seus textos! Este, especialmente. Emocionante... Escreva sempre... e me permita ler de vez um quando! Te amo. MK
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