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Só De Passagem

Há muito, parecia estar só de passagem no mundo. Fazia, todo dia, sempre igual. Estudava, cozinhava, lavava a louça, e estudava. Não lhe agradava o ritual, mas mandavam-no. Mandavam-no ser máquina e homem, sempre atarefado e insatisfeito, sempre do jeito que era obrigado a ser, com vontade de ser o que era de fato. Sua válvula de escape era o desenho. Por muitos anos, faltaram-lhe as ferramentas mais básicas para fazê-lo. E perdia-se no lápis e no papel. Em seus últimos anos na escola, sempre assombrava-lhe a pergunta do que queria ser quando crescer. Não sabia dizer, por que era gente, mas ninguém o havia ensinado a querer. Ao longo da vida, cresceu-lhe uma crosta de coisas não ditas, pudores vencidos, medos profundos, viagens não feitas, e obrigações. Crosta dura, essa. Dura demais pra um homem menino que não havia nem alcançado a maioridade penal. Se transformou em uma pessoa fechada e levemente mau humorada, que não partilhava do seu íntimo com ninguém, nem com o desfile de namoradas firmes (levemente burras, duramente desinteressadas na vida dele). Se encurvava sob a mesa com seu lápis com mais frequência. As aulas na escola o entediavam. Prestava atenção, mas não sentia tesão pela vida. E a rotina se repetia. Se sentia preso em Cotidiano, do Chico. Mas sem ter quem esperar no portão.

Quanto a ela, se apaixonava depressa. Sentia ciúmes. Porém, pouco gosto pela vida. Cada vez mais festas, cada vez mais alcool. Mas isso não alimentava o monstro dentro de si. Não fazia a vida, tão sem sal, ter o gosto de um bife. Escapava pra a escrita. Mais uma vez, debruçada sob o papel ou sob o laptop. Escrevia de amor, escrevia de saudade.

Eles se encontraram. E se desencontraram. Algumas vezes. Mantiveram-se amigos e amores secretos. Descobriram-se, e sem saber, salvaram-se. Um ao outro, como um.

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