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Moi


Afastou a franja azul dos olhos. Estava rindo de uma piada realmente imbecil. E assim era ela: espontânea. Fazia o que dava na telha, e se não desse, não fazia. O batom vermelho vivo contrastava com a blusa branca e a saia de cintura alta florida. Quem dera tivesse aprendido a amar outro que não ele. Tinha seus surtos. Não eram raros, ela era cheia de defeitos. Comia demais no almoço, e depois não jantava, ou não comia no geral. Jurava ser a dona da razão, contracenava consigo mesma em uma peça só dela, e irritava-se quando seu script não era seguido a risca. Tomava sorvete só depois que ele derretia, sempre roía as unhas quando prometia a ela mesma não fazê-lo, tinha vontade de ir embora, sumir dali, mas faltava coragem. Achava defeito em tudo, mas via como o mundo podia ser belo; sonhava acordada mas não custava a levantar; queria ser e fazer, mas lhe faltava vontade; por vezes sentia-se infeliz e sozinha. Todos diziam que ela era amarga, mas a verdade é que as pessoas a fizeram assim. Carecia de amor, e este não faltava, mas sentia-se como um quebra-cabeça incompleto, uma peça sem final, um ônibus sem passageiros além dela. Gostava de suas roupas pretas e brancas, longas e curtas, de couro ou de pano. Inconstante. Dada a opostos. Queria desesperadamente ser outra, mas sê-lo era impensável, impossível, inviável. Pensava em ser de tudo, mas só se via encenando. Gostava de Beatles e Rolling Stones. Jamais agradava a ela mesma com nada, e tinha a impressão que desgostavam-lhe. Reclamava, e como. Tinha a necessidade de ser, e o fazia sem amarras. Jogava tudo para o alto, mas obrigava-se a recolher os pedaços depois. Passava noites insones, imersa em problemas triviais, imersa nos monstros que viviam dentro dela. Acordava cansada, de saco cheio, com medo da vida, mas apaixonada por ela. Quis acabar com ela mesma milhares de vezes, mas nunca chegou as vias de fato. Bebia. Fumava. Frequentava shows, boates, bares, teatros e botequins. Frequentava a escola, por mais que esta a enfadasse. Queria revolucionar. Era poeta, mas não aprendera a amar. Por vezes machucava a ela e aos outros. Se prendia na frase de quem escreve, sente mais, e esperava ser tão normal quanto possível para uma garota tão cheia de defeitos e peculiaridades. Seus cabelos curtos e completamente azuis reluziam ao sol. Os óculos escuros sempre no rosto e os olhos sempre cobertos de maquiagem, mesmo pela manhã. Nem gorda nem magra, nem chata nem suportável, nem feia nem bonita. Conseguia o que queria, quando queria. Seus olhos azuis piscavam duas vezes, mordia seus lábios tingidos do habitual vermelho intenso, e franzia levemente a testa. Tinha mania de roer tampas de caneta, lápis e lapiseira. Sorria quando não devia, chorava quando não aguentava. Não gostava de se ver fraquejar. Detestava quando prometiam-lhe ligar e não ligavam, e quase tanto quando não atendiam o telefone. Chorava sozinha. Ficava sozinha. Se ao menos tivesse um desejo, talvez pudesse mudar. Não tinha um desejo. Tinha, ao invés disso, amigos incríveis, um relacionamento difícil com seus pais, e um amor imenso pelos seus avós. Sabe-se lá quem era, e ela ainda estava por descobrir. Diferente. Mentia facilmente quando lhe convinha. Omitia algumas coisas até de si. Por que tudo tem que ter um fim? Eu não sei nem por onde começar. Nunca sabia começar. Nem terminar. Terminar acabava em lágrimas meio amargas, base, colírio e um sorriso falso. Tantos finais. E mesmo com tantos finais, com tanto amargor, nunca estava tudo bem. E quando estava, tudo findava, e ela voltava a ser sozinha, com fones de ouvido, casaco de couro, na chuva de final de ano.

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